O bebê de tarlatana rosa — Fotojornalismo na pós modernidade II

Como bem disse o Professor Ignacio Aronovich: “Em tempos de ‘fake news’, não é surpresa que existam ‘fake photographers’”

Daniel Ramalho
6 min readSep 4, 2017
Pesquisa de I. Aronovich mostrou que, como as imagens foram manipuladas e invertidas (flipadas), enganaram também os algoritmos dos buscadores de imagens.

A epifania de Rimbaud (je te un autre) serve para tentar especular sobre o fenômeno. O personagem é um fotojornalista fictício que, como um cometa, aparece na rede, difunde-se exponencialmente na teia através das redes sociais e torna-se influenciador digital a partir das ações de copiar, colar e interagir. E, principalmente, cativando pessoas e gerando altas taxas de engajamento ao se utilizar de imagens de autoria alheia como suas. Quando detectada a fraude se deleta. Um sério estudo de caso para pesquisas futuras em comunicação, ciência da informação e memória social.

Fotógrafo independente e surfista. Quando criança, passou sete anos se tratando de um melanoma, e teve uma iluminação. Se dedica a cobrir guerras e conflitos humanitários enquanto também trabalha para a ONU e ONGs que lidam com refugiados. É o responsável direto por dois abrigos na Faixa de Gaza. Tem mais de 127 mil seguidores no Instagram. Colabora e publica em veículos como Vice, Wall Street Journal, BBC e LensCulture. Faz entradas ao vivo pelo Facebook para a Al Jazeera. Em seu tempo livre, ensina surfe a crianças carentes da região.

Fosse roteiro de filme, tudo bem. O que pega é que isso tudo foi vendido como real, logo jornalístico. Tremenda cascata.

O galerista e curador Fernando Costa Netto, em coluna no Waves, teve a grandeza e a humildade de reconhecer que caiu nessa, matou o personagem e escreveu sobre uma das maiores trapaças da história do jornalismo: Edu Martins enganou este jornalista que escreve a vocês, […] os principais veículos de comunicação do mundo e sabe-se mais quem. De alguma quebrada, esse pilantra genial se passou por repórter fotográfico de Guerra e por mais de um ano deu a volta em todo o mundo. […] Eu gostava desse filho da puta.

Na pós-verdade, parece que esses apontamentos sobre uma insipiente neomitologia cibernética ficam evidentes a partir desse evento onde o personagem (virtual) se apodera do ator e tira a máscara do público, no caso, a imprensa. E deixa uma pista eminente para investigação do problema maior das imagens na contemporaneidade. Aquele que Paul Virilo chamou de Estética da Desaparição. Talvez, deviam tê-lo questionado mais sobre o aparelho fotográfico e suas potencialidades em si do que sobre o que, em tese, se encontrava retratado nas imagens. Virado as fotografias ao avesso.

A gigante BBC, hoje uma das maiores vendedores globais de conteúdo, ainda fiel a alguns princípios antigos, colocou uma força-tarefa na tentativa de fazer um mea culpa e tentar explicar porque raios caiu na pegadinha do malandro: Diante das suspeitas e do risco de violação de direitos autorais, o conteúdo original foi retirado do ar. Pedimos desculpas a nossos leitores pelo engano. O caso servirá para reforçar nossos procedimentos de verificação.

A Vice, que nos últimos tempos assinou contratos milionários de fornecimento de conteúdo para os grandes grupos brasileiros de comunicação, teve uma postura completamente oposta à de Costa Netto e da BBC e, pura e simplesmente, mandou pras cucuias (deletou) todo os conteúdos referentes ao episódio. Nos hiperlinks para as páginas, lê-se agora: Já se foi o disco voador numa vã tentativa de construção de um esquecimento e (ou) desaparição desses memórias.

Esses veículos (agenciadores, nativos digitais) têm boa parte do faturamento na venda de conteúdo para outros veículos (tradicionais) que, assim, terceirizam atividades fundamentais de checagem e apuração. Ao lavarem as mãos para o fazer jornalístico vão enterrando a pouca credibilidade que ainda os resta. Tal qual o suposto fotógrafo, simplesmente copiam, espelham e colam o conteúdo alheio, abrindo mão de atividade basilar para prestação de serviço de interesse público que seria o exercício do (bom) jornalismo.

E aqui reside uma problemática maior: quando os supostos veículos sérios de jornalismo, nativos digitais, passam a adotar o mesmo procedimento mim acher (apagamento da informação) revelam o que há por detrás de suas máscaras. E isso é uma carranca pavorosa. Compartilham das angústias de Heitor de Alencar, personagem de João do Rio: Que fazer? Levar a caveira ao posto policial? Dizer a todo o mundo que a beijara? Afastam-se, apressam o passo e deitam a correr feito loucos com os queixos batendo, ardendo em febre, desse bebê de tarlatana rosa da história do jornalismo. Numa fuga apressada em mostrar que não utilizam daquilo que é chamado de Processo Profissional no artigo de Charlie Beckett para London School of Economics sobre como cada vez mais o Jornalismo está sendo feito pelo lado emocional.

De novo: a crise da imprensa mundial é muito mais do que financeira, é institucional, de valores e de princípios. Agindo dessa maneira, ao simplesmente repassar essas “malas” de conteúdo, sem checar sua procedência, esses veículos atuam como espécie de doleiros na complexa engenharia da corrupção, “lavando” o tal do conteúdo que adoram dizer ser o novo rei.

Enquanto, antigamente, os veículos em papel seriam obrigados a escrever editorial mais errata, os exclusivamente virtuais podem simplesmente apagar. Mas aí desconsideram o pacto implícito com o leitor (usuários). Enquanto as obras de ficção exigem da audiência a suspensão da descrença, os veículos de jornalismo deveriam atuar ao contrário, exigindo e fazendo -se merecedores da confiança dessa audiência. Sendo, de fato, fontes primárias.

Em longa entrevista à Recount, Edu Martins deixa latente quão rasteira é a sua filosofia. Devaneia sobre como sua humanidade, o compromisso com os fatos e preocupação social estão muito à frente do seu suposto trabalho. O que hoje parece uma certa ironia com o entrevistador, no fundo, demonstra que ele conseguiu o feito de se tornar um pseudo-fotojornalista mundialmente famoso que publica nos grandes veículos sem ao menos possuir conhecimentos elementares sobre fluxo de trabalho em fotografia digital:

Eu pessoalmente não uso nenhum programa como o Photoshop; Eu acredito que um bom fotógrafo real não precisa editar a imagem, ele faz um bom trabalho, mesmo sem essas ferramentas. Respeito aqueles que usam o programa, mas não vejo isso como parte do desenvolvimento do meu trabalho.

O lendário falsário Mark Landis enganou centenas de museus nos Estados Unidos fazendo doações de suas cópias de obras-primas. Apesar de parecer guardar semelhanças com a história de Edu Martins, Landis possui um talento primoroso para a reprodução. Domina a técnica. Apesar do esforço de alguns curadores que se sentiram lesados, como ele simplesmente fazia doações (não cobrava), não teve problemas com a justiça dos EUA.

Hoje, os profissionais da imagem não sabem exatamente como realmente proteger seus arquivos digitais de forma a preservar a autoria. A quase totalidade das imagens digitais publicadas na rede não se converte, de fato, em objetos informacionais (documentos). São impossíveis de rastreio no grande limbo do universo digital. E esse é talvez o grande desafio para aqueles que pretenderem atuar documentando visualmente esse novo mundo após a verdade. Além de tomar aulas de ética e História. A ver.

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Daniel Ramalho

Fotojornalista e pesquisador em fotografia, coleções, imagens, narrativas, documentação e memória social