A epidemia no Rio de Janeiro do século passado em imagens: memória e esquecimento

Daniel Ramalho
5 min readMar 17, 2020

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Em 1918, uma pandemia também assombrou o Rio de Janeiro. “A tenebrosa situação da Capital da República”, diz editorial da Revista Careta, “é a de um povo tragicamente flagelado por uma calamidade instantânea, fulminante e contínua.” O texto enumera algumas razões para o rápido espalhamento da doença na população fluminense como “o incompleto de nosso aparelho de defesa sanitária, a deficiência da maioria das farmácias, a falta imprevista e irremediável de médicos e todas as outras dificuldades terapêuticas oriundas da guerra universal favorecem o incremento e a mortalidade da terrível peste espanhola.” Um século depois, seria bom refletirmos sobre os vestígios do passado, documentos da memória coletiva, instantâneos de momentos de flagelo em que a fotografia — através da atuação de seus autores — cumpriu o necessário e triste papel de informar, pondo-se diante da dor dos outros.

A gripe espanhola atingiu em cheio o Rio de Janeiro, fazendo milhares de vítimas. De acordo com o historiador Boris Fausto, em meados de novembro calculava-se que dos 914 292 habitantes do Rio de Janeiro, 401 950 foram atingidos pela epidemia, provocando 14 459 mortes. Ao lado, vemos caixões insepultos no Cemitério do Caju pela ausência de coveiros mas com um fotógrafo a registrar.

Há um quase consenso na ‘pequena história’ da fotografia no Brasil que o fotojornalismo nasce n’O Cruzeiro, em 1928. Porém, acho possível discordar dessa afirmação. As imagens que ilustram essas ‘páginas’ são obras que não tinham os nomes de seus autores citados mas que não podem, em absoluto, serem relegados ao esquecimento ou não serem consideradas como ‘jornalísticas’. Aqui, se pretende é apresentar imagens com ‘valor informativo’, frutos do trabalho de profissionais da imagem, que tiveram de ‘ir para a rua’ em um momento de grande crise. Em suma, pretendemos render homenagens aos bravos que atuaram com o compromisso de realizar a história e a crônica visual de seu tempo, espécie de ‘monumento ao fotógrafo desconhecido’.

A imbricada relação entre fato-(verdade)-representação talvez seja a questão central do fotojornalismo desde o princípio, já que é exigido ao profissional que seja um expectador privilegiado da história, presente nos acontecimentos para transformar os ‘eventos’ em cenas, além de um compromisso ético.

Na imagem acima, o fotógrafo faz o registro do ‘momento decisivo’ em que populares começam a se mobilizar para saquear um depósito de frangos, alimento recomendado aos convalescentes. A vista favorável de cima dá ao expectador visão privilegiada e ampla da cena, livre de possíveis obstruções e também mantém o fotógrafo em local seguro para a realização do trabalho.

Como regra, em momentos de calamidades crescem os apelo a religiosidade. Como hoje, autoridades determinam o fechamento das escolas, universidades, museus, shows e cinemas mas permitem os cultos, missas, etc. Em 1918, apesar da recomendação de que a população evitasse o trem, o bonde e andasse a pé, ocorriam muitas procissões, como essa ao lado, no bairro do Andaraí.

Diz o editorial de Careta sobre os efeitos da gripe na economia: “a paralização dos negócios, escassez dos meios de transporte, a impossibilidade de substituir nos serviços públicos e particulares o pessoal enfermo, a ausência de recursos em muita gente e a avidez dos exploradores agravam (…) uma situação que se retrata no número de cadáveres que se decompõe insepultos.” O texto já indica para ‘necessidade’ — alguns autores chamam de ‘demanda por informação visual’ — de uma imagem que faça uma ‘síntese visual’ do evento. A violência e o custo social da “ausência de recursos em muita gente”, que implica numa “crise alimentar” e da luta “contra a peste e também contra a fome”, fica bastante evidente nos olhares e na tez das pessoas nessa fila.

Interessante observar que, apesar da distância temporal, as imagens guardam muitas semelhanças comportamentos de 2020, que tendem a agravar-se com o avanço da infecção: o efeito manada na corrida por alimentos, evidente nessa fila por frangos, hoje se repete nos supermercados, vide as prateleiras vazias dos estabelecimentos que não conseguem repor os estoques.

Como consolo para esses tempos tenebrosos, ouçamos a lição que vem do livro Metrópole a Beira-Mar: o Rio moderno dos anos 20, de Ruy Castro:

“De repente, em fins de outubro — 15 mil mortes depois — , a Espanhola pareceu amainar. Os infectados se recuperavam, os doentes pararam de morrer. Aos poucos, as portas das casas começavam a se abrir. A cidade voltava à vida. Os caixeiros reapareceram atrás dos balcões. O comércio retomou seu movimento e o dinheiro, inútil diante da morte, recuperou seu antigo valor. Os teatros reabriram e agora tinham filas nas portas. Os navios voltavam a parar no Rio. Das janelas, ouviam-se tímidos sons de pianos. Algumas moças saíam as ruas. Assim, como surgira, a gripe foi embora. Não por alguma poção ou magia, mas porque as pessoas haviam ficados imunes.”

E, então, veio o carnaval de 1919, “o maior da história.”

Quarentemo-nos todos, então, ficando em casa por amor, respeito e(ou) empatia que esse coronavírus vai passar. E, logo, chega o carnaval.

Todas as fotografias reproduzidas nesse artigo foram publicadas na revista Careta no ano de 1918. Não há menção aos nomes dos seus autores.

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Daniel Ramalho

Fotojornalista e pesquisador em fotografia, coleções, imagens, narrativas, documentação e memória social