Favelas, epidemia e conflito social no Rio em 1918: lições em imagens

Daniel Ramalho
5 min readMar 23, 2020

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A legenda não poderia ser mais contundente: em 1918, no auge da epidemia da gripe ‘espanhola’, não houve nenhum auxílio aos moradores do Morro de São Carlos

Depois de pousar nos aeroportos do Galeão e Confins, espalhar-se pelo território nacional como “lembranças” de casamentos de milionários do high society em resorts praianos em meio a shows de artistas populares e brindes de champanhe francês e chegar primeiro ao Leblon, Ipanema e Barra, os noticiários sobem o tom de alarme para ‘avisar’ que o coronavírus chegou aos mais de um milhão de habitantes da cidade do Rio de Janeiro que vivem em suas 763 favelas. E, agora, o bicho vai pegar realmente. Olhar para vestígios visuais dos ‘rascunhos’ da história nas páginas da imprensa da época da epidemia em 1918, nas fotografias publicadas, que talvez nos ajudem a entender um pouco do que virá.

A epidemia do coronavírus atua em sentido invertido a moléstia frequente nas áreas das favelas carioca, a tuberculose. Em uma entrevista ao site da Fiocruz, a engenheira sanitarista Rosely Magalhães aponta para a existência de uma relação inversa entre a apropriação desigual do espaço urbano e a incidência de tuberculose. Segundo ela, não é a pobreza que facilita a reprodução social da doença, mas a exigência dos mais ricos por uma pobreza que os atenda que produzem condições desfavoráveis, como a alta concentração populacional, a baixa qualidade das moradias e o acesso insuficiente a serviços essenciais.

Profissionais de saúde subiram o Salgueiro para prestar assistência

O fato é que o coronavírus fez um ‘caminho’ invertido, não ficando confinando às favelas que, já há muito, sofrem com a tuberculose, hoje, no Brasil concentrada nas periferias dos territórios ‘mais ricos’, que atraem a pobreza para suas periferias. “São pessoas que migram atrás de emprego e melhores condições de vida nos municípios que concentram riqueza”, afirma Magalhães.

Na imagem que abre esse artigo, um atestado que, em 1918, a cidade já sofria esse apartamento. Em uma edição da Revista Careta ilustrada com inúmeras cenas de uma cidade apresentada em “estado de convalescência” — ou seja, se recuperando — essa imagem, no seu silêncio, nos ‘grita’. Publicada logo abaixo de uma cena na enfermaria do Hospital do Meyer que tem a legenda — “Reminiscência de uma epidemia” — o que indica que a doença já começava a se tornar uma lembrança, deslocando-se do ‘plano’ dos eventos para o a ‘malha de furos’ da memória coletiva. Mas logo abaixo desse legenda, uma fotografia que mostra uma família (?) posando retinta para o fotógrafo em frente aos barracos de madeira — com uma legenda cruelmente enfática: “neste local não houve socorro aos moradores”. A montagem dessas cenas nos aponta que cidade do Rio de Janeiro já era ‘partida’ no começo do século XX: os ‘do asfalto’ eram acudidos — e os ‘do morro’ abandonados a própria sorte.

Interessante observar que 1918 é apenas dois anos depois da gravação de Pelo Telefone — considerado o primeiro samba. E quando a epidemia ‘sobe o morro’ — que não tinha, não tem e será que, algum dia, terá a sua “vez”?— é que a tragédia social se instaura de fato. E, muitas vezes, a caridade e solidariedade surgem dos lugares, locais e dos grupos menos esperados. Vejamos exemplo:

Uma das consequências mais tristes das grandes epidemias e que levam às comparações com os esforços de guerras é a fome. No Rio, onde a maioria dos trabalhadores atua de forma autônoma, como biscate ou camelô, com a paralisação da economia, a reclusão das classes média e alta em ‘bunkers de quarentena’ e o sumiço dos turistas, os mais pobres passam a depender da solidariedade. Em 1918, aconteceu muito na forma de “caridade oficial” onde os quartéis do exército, bombeiros e da polícia se transformaram em locais de distribuição de pão e sopões. Resta-nos saber de onde sairá a caridade que precisamos? Ao lado, página de revista que mostra distribuição de sopa e pães nos quartéis da Cavalaria e do Meyer.

Grandes perigos, e, talvez as maiores responsabilidade em momentos de grandes crises, são a construções das narrativas e a produção documental. Há muito se diz que a imprensa faz o rascunho da história. E, hoje, já não se dedica a cumprir mais esse papel, especialmente, nos aspectos da história visual. Por exemplo, a imagem abaixo foi publicada em um grande jornal brasileiro para ilustrar uma reportagem histórica com o título: ‘Como a gripe espanhola paralisou São Paulo em 1918’. Só que a usa uma imagem de uma enfermaria “de campanha” montada no Instituto Benjamin Constant, então Escola, instituição no bairro da Urca voltada para a educação de cegos, fundada em 1854 por D. Pedro II . Exemplo de fake news historiográfica.

De acordo com uma reportagem de Careta, em 1918, o Morro do Salgueiro apresentou mais de 800 casos de influenza. O verbete da Wikipedia diz que o Morro do Salgueiro, em 1934, possuía 7000 moradores. Interessante é pensar que à época profissionais de saúde subiram o morro para prestar socorro a comunidade. Será que hoje, um século depois, haverá algum movimento parecido? Programas abandonados como médico da família e agentes comunitários de saúde farão muita falta. Precisamos de mais ações e iniciativas da sociedade civil que diminuam o abismo social em nossa cidade para, como no samba de Jobim e Vinícius: “O morro não tem vez / Mas se derem vez ao morro / Toda a cidade vai cantar.

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Daniel Ramalho

Fotojornalista e pesquisador em fotografia, coleções, imagens, narrativas, documentação e memória social